A internet livre e aberta como ideologia: minha tese de doutorado

Eu sei que já faz um tempinho que defendi minha tese de doutorado e estava devendo esse post para falar dela, mas antes agora do que nunca! 😀 A defesa foi em dezembro de 2018, eu sei, já faz um ano e meio, mas quando a gente chega ao fim de uma jornada tão longa quanto um doutorado, o que você mais quer é sossego por um bom tempo.

Por mais cliché que poderá parecer, é necessário frisar que era o fim de um longo e árduo ciclo, que deixou sequelas, mas também muitas lições importantes e bonitas. E foi necessário um ano até que eu pudesse retomar meu entusiasmo pelo trabalho acadêmico que eu sentia que havia perdido um pouco durante todo o distópico 2019. Eita, parece exagero chamar 2019 de distópico quando se está em pleno 2020 pandêmico, mas vamos lá!

Bom, vamos ao que interessa, a tese! E do que se trata a minha tese? Tecnologias livres e abertas, claro! 😉 Mais especificamente sobre o ideal da internet livre e aberta. O título da tese é: A internet livre e aberta como ideologia: o debate da neutralidade da rede no Brasil e nos Estados Unidos. Eu analisei como a internet, desde sua criação, tem sido classificada por diversos grupos sociais como uma tecnologia intrisecamente livre e aberta. Defendi que essa ideia funciona como uma ideologia híbrida, o que significa dizer, que ela é defendida tanto pela direita, quanto pela esquerda, que estão em constante disputa por poder e por legitimação da sua própria versão da internet. Cada grupo possui visões diferentes do que seria uma internet aberta e livre: de um lado está uma visão mais coletivista, que defende a rede como uma espécie de ágora eletrônica; e do outro está uma visão mais neoliberal, que tende a enxergar a internet como um mercado eletrônico.

Portanto, abertura e liberdade possuem significados diferentes para cada grupo, a depender de seus interesses. Ambas as visões defendem que a rede deve ser um espaço onde a liberdade individual precisa ser preservada, assim como um lugar aberto para todo e qualquer indivíduo. Mas elas divergem radicalmente nos sentidos de liberdade e de abertura. A visão da ágora, que também poderíamos considerar como sendo de tendência à esquerda do espectro político, fala em liberdade no sentido de estar livre para se expressar, se associar, participar na rede; e abertura no sentido de transparência, participação e descentralização de poder. Já na visão do mercado eletrônico, que está mais alinhada com a direita, liberdade significa livre iniciativa, mercado livre, fluxo irrestrito de bens e informações no mercado global que é a rede, tudo isso no sentido neoliberal; enquanto abertura também significa descentralização de poder, mas no sentido de poder mínimo ao Estado e máximo para os indivíduos.

Aqui a coisa pode ficar um pouco confusa e mesmo traiçoeira, já que à primeira vista ambas parecem defender os mesmos valores, principalmente quando se trata da oposição que fazem à controle centralizado. Mas quando passamos a analisar fatos, as diferenças podem ficar um pouco mais evidentes. Foi o que procurei fazer ao colocar o debate da neutralidade da rede como um exemplo a partir do qual poderíamos assistir as duas visões operando. Na tese, portanto, eu analiso os debates da neutralidade da rede no Brasil e nos Estados Unidos para demonstrar como essa ideologia pode funcionar em direções opostas, mesmo defendendo a mesma ideia, a da rede neutra.

Banner adaptado de conteúdo da Web We Want.

Para quem não está familiarizado com a ideia de neutralidade da rede, o conceito surgiu no começo dos anos 2000, cunhado pelo professor de direito Tim Wu. Ela é herdeira de um princípio muito antigo do direito, o de commom carriage (transporte comum), que trata das obrigações de um serviço de interesse público. Wu definiu a neutralidade da rede como uma proibição a ser imposta às empresas provedoras de internet, que na ausência comprovada de danos à sua infraestrutura, não poderiam restringir ou impedir o acesso de usuários a conteúdos e serviços específicos na internet. A neutralidade da rede, portanto, seria uma proposta de abordagem neutra e não discriminatória da internet. A arquitetura end-to-end (ponta-a-ponta) da internet é um dos principais argumentos usados pelos defensores da neutralidade da rede para justificar a sua necessidade. Esse design, desenvolvido nos anos 1970, permite que a transmissão de pacotes de dados pela internet seja feita independente do tipo de conteúdo carregado pelos pacotes. Segundo esse argumento, a internet já nasceu neutra e não discriminatória.

Foto: Mary Altaffer/AP Photo

Nos Estados Unidos, o debate sobre a neutralidade da rede teve origem na reação ao monopólio das empresas de telecomunicação e focou num discurso de defesa do consumidor e de defesa da inovação. Esse debate resultou na criação de várias regras para a internet, que sofreram alterações de acordo com as disputas políticas e judiciais travadas pelas partes interessadas. Essas regras são determinadas pela FCC (Federal Communications Commission), agência responsável por regular as comunicações no país. Como demonstrei na tese, as regras variam de acordo com quem assume o comando da agência e do lobby feito por grupos interessados na questão, mas têm usado a narrativa da ideologia da internet livre e aberta como justificativa para as mudanças. Na tese, eu também faço uma linha do tempo dessas regras até o ano de 2018, quando a FCC decide desobrigar as empresas de seguirem o princípio de neutralidade. A conclusão sobre o contexto americano durante esse período do início dos anos 2000 até 2018, é que o debate assumiu um tom mais econômico.

No caso do Brasil, 0 debate sobre a neutralidade da rede deu origem a uma das mais robustas legislações sobre a internet no mundo, o Marco Civil da Internet. Essa lei foi construída de forma colaborativa e online, sendo aprovada em 2014 com o objetivo de estabelecer os direitos e deveres das empresas, cidadãos e Estado. Um dos três pilares dela é exatamente a defesa da neutralidade da rede. O MCI foi criado no contexto de reação ao que na época os ativistas chamaram de AI-5 digital ou lei Azeredo, por ter sido proposta pelo então Senador Eduardo Azeredo. Ela foi um projeto de lei com abordagem criminal para a internet e com uma proposta vigilantista dos usuários, a ponto de receber esse apelido de AI-5 digital por representar um dispositivo de censura e ameaça à privacidade dos usuários.

Foto: Dilda Sampaio/Estadão.

A conclusão da tese a partir da análise desses dois processos diferentes foi a de que nos Estados Unidos predominou o discurso da internet como mercado eletrônico e, portanto, uma rede neutra representava a defesa da inovação e dos direitos do consumidor e da livre concorrência. Por outro lado, no Brasil, o debate focou no combate à censura e na defesa da nossa democracia. A aprovação do MCI funcionou para muitos envolvidos no processo como um mecanismo de fortalecimento da nossa democracia. A análise dos dois contextos mostra a ambiguidade dessa ideologia, usada para defender ao mesmo tempo a democracia e o mercado. Demonstra também que, apesar dessa ideologia ser apontada por alguns pesquisadores como sendo uma ideologia neoliberal, que favoreceria apenas a direita, ela também tem sido usada pela esquerda para reafirmar valores democráticos e igualitários.

O papel do Estado na governança da internet é um componente fundamental que marca uma diferença entre essas duas visões da rede. Enquanto na ágora eletrônica a participação do Estado é fundamental para garantir, através de políticas públicas, uma rede aberta, livre e democrática; para o mercado eletrônico, quanto menos o Estado intervir, mais a internet será livre, aberta e inovadora. Para uma o erro estaria na regulação, enquanto para a outra estaria na desregulação. Não pretendo dizer com isso, que no Brasil não havia grupos defendendo também o mercado e que nos Estados Unidos não havia os que defenderam neutralidade da rede como sinônimo de democracia, mas que nesses dois períodos históricos específicos analisados, predominou esses discursos opostos.

Bom, procurei resumir aqui os principais pontos da tese. Espero que tenha despertado interesse de vocês na leitura. Quem quiser se aprofundar nela, a tese em pdf está disponível para download no repositório da USP, basta clicar no link abaixo:

Clique aqui para baixar a minha tese! 😉

Quem quiser bater um papo sobre o assunto, fica à vontade pra comentar aqui embaixo, mandar e-mail ou mensagem por outros canais. Vou adorar esclarecer alguma coisa ou debater alguns pontos sobre o tema! 🙂

A tecnoutopia do software livre: uma história do projeto técnico e político do GNU

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GNUzinho e meus filhotes impressos 🙂

Eu estou muito atrasada, eu sei, mas ainda compensa uma postagemzinha sobre a publicação do meu livro. Na verdade, esse post é para retomar este blog, porque em tempos de quarentena e apocalipse mundial, nada melhor do que escrever. Escrever é a forma mais agradável de ignorar a vida, como já dizia Fernando Pessoa. Pois bem!

Como muitos de vocês devem saber, a minha pesquisa de mestrado foi sobre a história do movimento que defende o software livre. O produto deste pesquisa foi apresentado em forma de dissertação em janeiro de 2014, quando defendi o meu trabalho na Universidade de São Paulo. Como a banca recomendou a publicação do trabalho eu submeti um pedido de auxílio publicação para a FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e em 2016 consegui o necessário para que o livro se tornasse real.

Em 2018 o livro foi publicado pela Alameda Editorial e desde então tenho recebido um feedback bem gratificante. Até arrisco dizer que ele tem se tornado uma das principais referências aqui no Brasil sobre a história do movimento software livre. Para quem ainda não leu e tem curiosidade de saber o que o livro aborda especificamente, aqui vai um breve resumo.

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Como a minha intenção era contar a história do movimento e defender a ideia de que ele em algumas partes do mundo, como aqui no Brasil, assumiu o lugar de outras utopias na virada do século, o livro aborda a história da computação e do próprio software livre a partir de uma perspectiva econômica e política. É claro que não deixo de lado as questões técnicas, mas elas dividem espaço com as questões históricas.

Assim, no Capítulo 1: Tudo assistido por máquinas de adorável graça, eu conto a história do contexto de criação dos computadores pessoais e falo também do surgimento da cultura hacker. Se você é do tipo que tem muito interesse pela cultura hacker, esse capítulo pode te interessar muito. Ele é importante para explicar de onde vem a tradição de compartilhar informações/conhecimento na qual o Richard Stallman se baseia para criar o Projeto GNU.

No Capítulo 2: A Filosofia GNU, explico como a indústria do software nasceu e como o software proprietário se tornou o seu padrão de produção. A partir disso, é possível entender em qual contexto nasce o Projeto GNU, que dá início ao movimento software livre, na metade dos anos 1980. Nesse capítulo eu também explico quais são os principais argumentos do movimento e qual o perfil político-ideológico de seu criador, Richard Stallman.

A parte final, o Capítulo 3: O projeto social do GNU e o software livre como utopia, é o arremate do livro, onde faço algumas considerações sobre as questões ideológicas em torno da disputa entre o software livre e o open source, explicando como a chegada do Linux ao movimento nos anos 1990 deu uma outra tonalidade a ele, tornando-o mais palatável para o mercado e, portanto, mais facilmente cooptável pelo discurso neoliberal. Por fim, falo um pouco sobre a origem do movimento aqui no Brasil e de como ele representou um lampejo de esperança para grupos de esquerda desiludidos com o fracasso da utopia socialista no século XX.

Para quem tiver interesse em saber mais sobre essa história, é possível adquirir o livro nas principais livrarias do país, além, é claro, do site da editora Alameda. Aqui na lateral do blog eu vou deixar a imagem do livro e um link permanente para a página da Alameda, onde ele pode ser comprado.

Fiquem à vontade para enviar sugestões/feedback sobre o livro por aqui ou por e-mail.

Até! o/